domingo, 9 de novembro de 2008

o meu jardim não é mais o meu jardim

durante seis meses tentei de todas as maneiras garantir esse direito: o jardim é meu! roseiras eram replantadas e outras substituídas todos os dias, lara e jade montaram um império de destruição. elas arrancavam sem piedade e eu consternada, pedia perdão as pobres roseiras e as plantava novamente. então em uma manhã de domingo entreguei as duas o meu jardim. senti uma tristeza profunda, pois não teria mais o goso de contemplar as belas rosas que alegravam o meu coração e os dias tão fatigantes de meu existir. mas tomei uma decisão. se não posso ter jardim vou ter um pomar... plantei duas jaboticabeiras, um pé de pinhas, uma pitangueira. estou na espera dos frutos, as vezes olho para cada uma delas e prometo que um dia talvez terei rosas novamente. lara e jade se aquietaram um pouco, só furam buracos e ficam com o nariz parecendo nariz de palhaço, elas são felizes assim... queria que elas ficassem sempre limpas, perfumadas, mas com certeza não é o querer das duas. rosinha, a moça que cuida dos banhos e dos lacinhos briga com elas o tempo todo. todas as quintas-feiras é a mesma história: banhos, lacinhos, terra. todo o encantamento do dia é muito passageiro... será que elas nasceram rosas e querem que eu as plante no jardim?
sim, estou radiante pois hoje vi que a pinheira está em flor e logo logo poderei saborear um de seus frutos. e tenho certeza que o pomar é meu e de todos que sonham com rosas no domingo.
gigi pedroza

quarta-feira, 5 de novembro de 2008

os boneco

era uma segunda-feira morna, talvez porque a menina estivesse com o coração contente. era mais um dia de feira-livre. ela e sua irmã caçula iriam com a mãe bondosa, que no dia anterior havia depositado nas suas mãozinhas as moedas esperadas por toda a semana. ela sabia o significado - novos bonecos. pequenos, desengonçados e feios, mas ela não tinha essa percepção. achava-os belíssimos, pois tudo era sonho e brincadeira.
acordou animada, cantarolava uma canção antiga que muitas vezes ouvira a mãe cantar quando estava a espremer o queijo. não sabia ela que os versos marcavam o compasso da dor. foram. a mãe determinou tarefas e disse para as duas de mãos dadas comprarem os bonecos e que voltassem logo!
as meninas chegaram à banca cheia de quinquilharias, coisa que menino gosta. o senhor era míope totalmente. usava óculos de fundo de garrafa... era assim o dizer do povo. coitado! pouco enxergava, dando assim oportunidade a quem o quisesse roubar. e a menina roubou.ela comprou sim os dois bonecos com as moedas, mas com uma enorme vontade de ter mais um, ela roubou dois, um para ela e o outro para sua irmã, pois menino, às vezes, não é egoísta, principalmente quando precisa de cumplicidade. meu deus! quanta inocência... cumplicidade infantil é reveladora! logo vem os qui-qui-quis, os ca-ca-cas. as mães espertas percebem o que de errado há. foi assim.
voltamos para a fazenda, não éramos mais as mesmas, estávamos diferentes. eu por ter feito algo que me levaria ao inferno, os mais velhos diziam isso, e minha irmã louca para revelar... revelou o segredo que eu pensava ser. mas menino não guarda segredos. tudo fica claro nos risinhos, no olhar, nas mãos torcidas, no próprio medo. no medo da descoberta. mamãe ficou chocada - "filha ladra! isso nunca!" o castigo lento veio, não foi surra como era o esperado. foi castigo silencioso, de uma semana inteira solitária no medo, na vergonha, nos outros que olhavam o revelado.
os bonecos ficaram expostos no museu da dor. todos que passassem, obrigatoriamente, os veria. olhariam para a prova do crime - lugar sagrado do pecado exposto - na cristaleira. passar em frente era a dor, a vergonha reveladas transparentemente nos belos cálices de vinho, licores e bebidas fortes dos dias festivos. isso durou toda a semana, até aquela próxima, sagrada e inesquecível dura segunda-feira, que nunca mais se apagaria das lembranças da menina.
teria que devolver ao homem da banca os bonecos roubados e ainda lhe pagar sem se quer poder trazê-los. confessaria publicamente a sua falta. foi terrível. dói ainda até hoje. foi uma surra sem marcas visíveis, mas as lapadas da vergonha ainda hoje ardem no coração da menina que queria apenas mais um boneco para brincar e vestí-lo como os outros que duravam apenas uma semana, pois a vida era efémera para aqueles bonecos das segundas-feiras do ano santo do senhor.
gigi pedroza

rosinha e o homem da tuba

rosinha. rosa maria de jesus. menina simples. criada pela madrinha. tinha um quê de borboleta assustada.
ela foi à feira de santa rita, cidade pequena mas encantada pelas novidades do dia. rosa maria foi a escolhida entre as negrinhas para carregar o balaio. isso a fez feliz. sonhadora. pois lá tinha as cores do mundo.
o cego aderaldo tocava viola e pedia esmolinhas pelo amor de deus. ela olhava-o curiosamente. via em seus olhos um branco perdido e vazio. a pobre se enternecia e olhava sem ser olhada, apenas pressentida pelo cego que intensificava o seu pedido dolorido e penoso... "uma esmolinha para o cego pelo amor de deus..." tristemente rosinha escondia suas pequenas mãos vazias, cheia de dor e vergonha pois não possuía nada. apenas a caridade alheia. se afastava timidamente.
dona maria, a que vendia cambui, conhecida por muitos como jaboticaba, fruta que a enchia de vontade e desejos, pois eram pequenas, grandes e doces aos seus olhos, vendo-a com tão triste e desejoso olhar, dava-lhe um bom bocado.
o seu severino, homem da cocada mais saborosa e consagrada, que dava água na boca só de olhar... e rosinha não só olhava sentia em sua língua a imaginação, quase nunca podia comer, a madrinha não dava, apenas ralhava quando a pobre parava um instantezinho, mais que o necessário.
rosinha andava e ficava feliz. andava cercada de gente que pedia um preço menor... parecia leilão de festa de santo. ela olhava as mulheres... principalmente aquelas bem maquiadas e de roupas atrevidas. prostitutas. eram proibidas de circular entre a gente direita do lugar, mas teimavam e iam negociar... a menina as via maravilhada. só sentia que era pecado quando sentia o beliscão doído da madrinha.
tudo era admirado por rosa maria. tudo. pois a feira de santa rita era folclórica no vestir e no sentir. a menina amava não só a feira. amava e tinha medo ao mesmo tempo de algo nunca visto - o homem da tuba. ela lembrava até de uma certa história... "a festa no céu" - pobre sapo, pobre menina. seus olhos arregalados, paralisavam a olhar tal incumbência. o homem era pequeno que em um certo momento , ela ficava com medo da tuba engolir o homem, mas logo tomava tino com o despropósito. o homem e a tuba era um só ser. o que a encantava era a melodia estranha, absolutamente estranha e solitária. ela quedava-se ao embevecimento da maravilha do céu. só saia do pasmo momento quando seus bracinhos eram puxados com tanta fúria contida, e ouvia:"vamos embora menina tonta, não vê que isso é coisa feia se abobalhar!" rosinha acordava para a realidade. tinha que carregar na cabeça pequena, o balaio de compras tão pesado, tão pesado que doía o juízo.
gigi pedroza

as janelinhas envergonhadas

a mulher era tão experiente que adivinhava os dentes de leite loucos para voarem para o telhado após um pedido místico-infantil. seus dedos áspero sabiam o momento certo, pois a vida é a professora de todos que sabem aprendê-la. isso foi com seus quatorze filhos.
a menina tinha pavor dessas mãos que eram acostumadas com a lida dura do dia. daqueles que fazem da terra o sonho e esperança de sobrevivência. mãos calejadas, que pareciam à menina não ter dó nem piedade nenhuma.
dolorosamente a menina lembra. lembra do frango que era capado para engorda... como podia ter tanta coragem? nunca a menina compreendeu bem tal oficio. das bicheiras dos animais com creolina, os tapurus desesperados caíam com ajuda de uma lapa de pau até o pobre animal se contorcer de dor. das galinhas gogas que a mulher sabia como ninguém curá-las. untava a própria pena da miserável, algo líquido, estranhamente preparado, bico adentro. sangrava frango para servir à cabidela, aos visitantes. eram rituais estarrecedores para os olhos sonhadores da menina, pois ninguém e nada saíam do controle daquelas mãos que aprenderam desde cedo os ofícios de uma mulher predestinada para o casamento, os filhos e a casa. não podia jamais fraquejar. a ela cabia a ordem dos sonhos. provavelmente tenha sofrido como qualquer moça do seu tempo, jogada na sorte de um casamento infeliz. impiedoso destino para chegar a tal frieza, pois a vida era madrasta com as mulheres nesse período da história.
como sempre a menina evitava, se escondia desses dedos. chegava a mentir, mas não dizia para a mulher de seus dentes moles que queriam dar passagem para os definitivos. a mentira não colava pois o que a mulher mais sabia fazer era criar filhos. não importava os erros, os acertos, sem freudianismo, sem piaget. ela sabia intuitivamente a hora.
o dia chegava. ela gritava: "assis pegue a menina! segure-a que eu amarro a linha..." era um deus nos acuda... se alguém passasse em tal momento pensaria coisas... quem sabe até matando uma pobre criança, tamanho era o escândalo que só a menina sabia fazer. gritava que ia morrer, mordia os dedos da mãe, lutava com as perninhas e os braços, que eram tão magrinhos, com o pai. odiava-os naquele momento, desejava as suas mortes. mas tudo em vão, quando o ritual terminava o homem e a mulher ofegantes e suados, a menina banhada em lágrimas, haviam cumprido o dever. para a menina apenas restava o desejo místico para jogar o dentinho ao telhado e fazer o pedido sagrado pelas gerações e gerações.
o pedido era feito, o ódio era guardado. tudo voltava ao normal, menos a menina que por um bom tempo sorriria pondo as mãozinhas na boca com vergonha da janelinha atrevida que se abria para o mundo, pois significava mudanças... a escola lhe esperava.
gigi pedroza

terça-feira, 4 de novembro de 2008

a renovação

na nossa casa era o dia mais esperado. uma semana antes de preparativos. casa limpa, flores nos vasos, a bateria dos alumínios era ariada com cinzas pelas moças. a cristaleira, razão de orgulho de mamãe, era lustrada, os cristais polidos, sequilhos, bolos, chá café no dia. era pura felicidade.
o bom dia chegava, e com ele, os convidados. uns vinham contritos e rezavam suas preces ao santíssimo com louvores e adoração. lembro-me até hoje... "coração santo tu reinarás/ o nosso encanto sempre terás..."outros pilheriavam no terreiro, que havia sido varrido com esmero. era a ordem. haviam aqueles que ao falarem sobre a colheita, exprimiam um gemido de tristeza, pois diziam sobre as pragas, a seca impiedosa.
a fogueira era preparada por papai e as meninas. era um ritual quase lúdico. iluminava a gente de lá. até os sonhos infantis da menina triste que observava tudo: joli, a cachorra, sempre no meio das pernas das crianças, com olhos esbugalhados a espera de uma guloseima que caísse das mãos de um... os beijos roubados as escondidas... uma vez teve "queda-de-corpo"- expressão usada por papai. foi assim... um dos irmãos, rapaz fogoso e uma certa jovem, era uma das mais moças irmã da cunhada... os dois com atrevimento juvenil entraram sorrateiramente no quarto das moças e lá se tocaram como nunca feito. a menina espiava tudo, o nunca visto.
a festa durava enquanto durava os sequilhos, o chá, o café e as conversas sobre chuvas que nunca vinham, mas sempre esperançava o coração daquela gente. no fim, todos ficavam felizes. as mulheres limpavam tudo, os homens carregavam os bancos improvisados e as cadeiras, as crianças sonolentas caiam nas camas e redes sem se trocarem. era uma noite abençoada de corações alegres. talvez.
mas renovação boa para nós as filhas de assis, era a de lurdes luis, filha de maria, a lavadeira da vida inteira. lá os sequilhos tinham sabor de rapadura de cravo e melado, não havia criança que não gostasse. lembro-me até hoje. íamos sempre vestidas com vestidos de bolsos para enchê-los de sequilhos e na volta pelas estradas da fazenda e caminhos de sonhos que eram só nossos comíamos com gula particular que toda criança tem. mamãe não achava isso bonito, mas sabia que criança é criança. ralhava, dizia que era feio, mas no fundo também se divertia. era só risos... até hoje sinto em minhas lembranças e saudades o sabor dos sequilhos de lurdes...
como a vida era doce e cheirava a sequilhos com chá de erva- doce, e eu tonta nem sabia disso, pois é. foi assim por muitos anos. é a faceirice da juventude que preludia a nossa velhice. meu deus! que tempo bom! adeus chico lopes, não o verei mais. nunca mais.
*renovação - festa ou cerimonia religiosa para renovar a esperança da família e do casamento.
gigi pedroza

domingo, 2 de novembro de 2008

tapioca e cabureto

ontem estive na casa de sonia, como sempre ela prepara algo puramente nordestino. ela fez tapiocas. ofereceu-me uma. trouxe-a para casa e guardei-a tão bem guardada para o outro dia, pois adoro tapioca-biju. dormi pensando no sabor do amanhecer.
acordei e fiz como sempre o ritual matinal. logo fui ao esconderijo. tamanha foi minha frustração, a tapioca tão esperada havia desaparecido, alguém viu-a primeiro e com certeza comeu-a sem nenhum remorso. não sei qual dos filhos pois aqui em casa ninguém confessa o inconfessável. lógico, isso em matéria de descobertas de tesouros. imaginem a páscoa...
tudo isso fez-me lembrar de um certo cabureto tão desejado pelas meninas lá de casa. quando era época de pinha, fruta deliciosa quando bem caburetada, chico, como era o comum, sempre o mais esperto escolhia-as com esmerada gula. sempre as maiores, as cobiçadas pela vontade infantil, pois dava água na boca de quem as vissem. eram todas impreterivelmente dele, de mais ninguém. as pinhas viravam tesouro infantil. as meninas procuravam até achá-las. as comia escondidamente, deixando apenas as cascas e as sementes para o rei das pinhas. ele ficava irado, gaguejava, chorava... mas qual das gurias para castigá-la? eram muitas as filhas de assis, e ninguém era besta de se entregar... oh! como o pobre chorava, piscava os olhos desesperadamente até mamãe acudir e consolá-lo:"você colherá amanhã outra mais bonita meu filho!"
pinhas e tapiocas se misturam no sabor de minhas lembranças entrelaçadas no passado e no presente de minha vida fatídica.
gigi pedroza

farpas



estou sozinha. irremediavelmente sozinha. apenas ouço o latido dos cães lá fora e o barulho constante e ensurdecedor do ventilador nesta tarde de abril.
meu corpo está amolecido por falta de perdão. perdão da vida que tenta reanimar-me e não tem resposta. estou oca de mim mesma. há a penas um sopro doloroso no meu íntimo.
estou sem os óculos, mal enxergo a minha letra, acho que o vulto que vejo é o meu próprio. apenas gastas e confusas imagens caligráficas que beiram a dor mortal da existência humana.
ninguém me ligou neste domingo. liguei incessantemente para tantas pessoas na esperança de acalentar a solidão corrosiva que está a destruir-me por inteira. estou gemendo. deus harmoniosamente se afastou, pois ele é alegria jubilosa do existir. porque tenho tanto medo da face de deus? os meus pecados deixaram de ser originais, eles se vestem e atuam no palco absoluto. estou em náusea, pois minha alma está visivelmente atordoada. joão, meu cachorro é um bom amigo. quer passear, mas eu não estou pronta. sou apenas um borrão de mim mesma. a existência é vírus no limiar da dor. e cruelmente, neste momento sou assaltada por um grito de esperança, maldita esperança. teimosa. que agarra a mão da sorte.
estou aqui, seca serenamente para esperar um breve inverno nostálgico.
gigi pedroza

seu joão de souza

lembro-me até hoje desse senhor. era baixo, um pouco atarracado, usava chapéu, tinha feições honestas. era bom. lembro-me principalmente porque ao que vinha mexia com a gula infantil de todas nós, as filhas de assis. trazia goiabas, belas goiabas doces e maduras. dava água na boca.
toda época d safra lá chegava. todos o esperava. passava de chácara em chácara, de sítio em sítio. vendia alegria. mamãe comprava caixotes cheios para doce e para a gurizada comer até se fartar. uma vez dessas eu estava com sarampo, como todos são cheios de superstições e medo, não pude participar da festa. chorei muito. cantei até uns versinhos ... "goiaba pra nois cumer"... isso para bulir com a sensibilidade de mamãe. eu era tão pequena, com tanta vontade de comer feito as outras que cantava esse refrão como uma litania dolorosa. mas ela era determinada, dura, as vezes, em suas convicções. não e não! iria piorar e isso era ruim.
vanvan e cidinha comiam saborosamente em minha frente só de pura maldade infantil. minha boca quente pela febre alta se enchia d'agua. era desejo só. agora´só poderia sentir aquela belesura de sabor no próximo ano. ia demorar, pois seu joão de sousa tinha tempo de passar como todos que passaram em minha vida.

gigi pedroza

adrina

tomando sorvete lembrei-me com saudades de adrina. uma mulher maravilhosa, reservada ao templo familiar: casa, marido, filhos.
nunca nunca se via adrina desnecessariamente, apenas no imprescindível momento de sua presença. igreja, feira, velório de amigos que se iam. havia reservas. ingratas reservas. eu criança, menina levada, mas sensível compreendia o imcompriendido. mamãe, as vezes dizia: "não seja curiosa... a vida é ingrata com os inocentes". eu refletia até doer o calar da voz.
hoje lembro de tudo e vejo claramente que a sociedade se faz de palmatória do mundo sem que se escute os gemidos do sofredor. e exactamente pergunto-me: qual o direito reservado tão pungentemente de acoar os mais simples em seu desejo de ser apenas feliz? eu era criança mas sentia o castigo imposto aos que ousavam ser. adrina com toda dignidade se fez mulher de e mãe de seus filhos, como talvez nenhuma outra mulher saberia ser e faria com tamanha grandeza e benignidade.
eu simplesmente amei esta mulher como se ama uma mãe no momento primeiro de nosso encontro. foi fantástico atravessar o corredor, um pouco sombrio, sala, quartos, em fim - a cozinha. ela fazia sempre um bom jantar. inesquecível Baião-de-dois. convidou-me carinhosamente e me fez centar com silvinha, minha amiga e colega dos segredos de infância. riamos tanto... éramos felizes. adrina sempre carinhosa permitia que brincássemos sempre. nunca queríamos nos deixar.
foi um tempo feliz de passado que se faz presente nas marcas que o tempo nos reservou para as saudades.
gigi pedroza

a casa

tinha cheiro de jasmim. talvez a mulher cuidasse disso. faz tempo, mas exalava essa felicidade primaveril.
a criança calada, cheia de cisma, olhava o santo que olhava ela. tinha medo um pouco, pois sabia que ele via tudo. a mãe que dizia isso. ela era pia nos dizeres da mãe. ela acreditava. acreditava até na caipora e levava fumo roubado só para vê-la. nunca, nunca via. era o mistério da infância dominado pelos mitos.
um dia fazia xixi acocorada, e com um pequeno graveto modelava vestidos de bonecas nunca feitos. mas era uma brincadeira de sonhos, fantasia e felicidade pois a bela terra seca, dura da grande estiagem, com o xixi molhando-a, dava á menina imaginação. bom mesmo era quando chovia, o terreiro virava sua tela gigante, desenhava tudo. desenhava a imaginação e sonhava com o encantado.
a mulher gritava sempre alguma coisa, apenas para saber-lhes os passos. a menina respondia "já vou mamãe", mas nunca ia. era o costume de todos os dias.
um dia a menina disse adeus ao jasmineiro de sua imaginação, ao terreiro, ao seu mundo. disse adeus para a mulher e sumiu nas costas do mundo.
a mulher morreu. a menina morre devagar todos os dias.
gigi pedroza

sábado, 1 de novembro de 2008

pude sentir com as pontas dos dedos a alma daquela mulher, num exercício contínuo talvez, pois ela se despia com aquele olhar de dor magoada. senti-a por muitos anos, aconselhei-a quase por toda eternidade, no silêncio madrugador das segundas-feiras. este era o dia da colheita das lágrimas contidas por horas e dias de exercícios que só a vida a soube ensinar. eram dias sem fim. calava-me, muitas vezes, para apenas ouvir os soluços contidos daquele coração atordoado de mentiras contadas para garantir a existência sufocante.
ela sempre contava-me histórias de sua infância. eu pensava em cada detalhe de seus sonhos arranjados de menina-pastora de cabras, de menina que na solidão das paragens campestres, olhava para o céu azul, quase imaginável, e dizia para si mesma: "um dia cantarei os mares dos meus desejos..." mas tudo ficou tão distante do esperado, do sonhado. a menina casou-se e foi profundamente infeliz por tempo sem fim, o que a alegrava, nos intervalos da dor, eram os gritos de felicidade dos inocentes que corriam, no terreiro, atrás dos pintinhos novos, da cachorra Joli, do gato. corriam felizes até da brisa sem saber da dor materna.
mas um dia a janela emprestou a fresta que ficava entre os ferrolhos e a convidou para dançar... dançou com os pensamentos, com as nuvens, com a carícia lenta do vento que tocava-lhe o rosto eternecido e doce, pois tudo era construído em seu imaginário. a mulher, a menina, a confusa imagem das duas era contida pela arguta sombra da memória.
foi sempre assim, ouvia-a, com sensibilidade repentina, os murmúrios seus. não havia medo do desgaste, pois todo amanhecer era possibilitado de esperança, e ouvi-la fazia bem a esta mulher que vos conta o leve momento de uma saudade.


seu josé valim

odiava a chegada desse senhor em nossa casa, pois significava desarrumação. eu tinha que mudar a casa de minhas bonecas porque tudo teria que sair do lugar para o pintor da vida inteira caiar a nossa casa.
mamãe ficava feliz... eu percebia pois tudo depois cheirava a coisa nova. ela adorava coisas novas. de uma pintura caiada a um fogão novo. lembro-me até hoje quando chegou o fogão a gas, foi uma festa só. era artigo de luxo naques tempos.
pergunto-me sempre o porquê de tanto gosto, muitas mulheres gostam tanto de coisas, cacarecos, enfeites, bugigangas. felicidade. eu não, gosto de livros, plantas, animais e lençóis lavados. gosto pouco de coisas para arrumar. sou preguiçosa profundamente.
lembro-me perfeitamente quando papai o contratava. a casa, ou seja, mamãe e as meninas ficavam em flor, pois a vaidade humana também se encontra em pequenos detalhes, momentos. pintar a casa era acontecimento, era felicidade ligeira, pois o tempo este vilão cruel borra tudo. logo com o passar dos dias e a chegada das moscas, a impressão de limpeza dava lugar ao que eu odiava na fazenda - moscas - pequenas, grandes e ligeiras. ódio profundo se apossava de mim. elas eram inconvenientes, dava náuseas. queria fugir dali , mas teria que ficar o tempo necessário, o tempo de compreender que gente e moscas disputam o seu lugar no universo. perde apenas aqueles que a vida gasta desnecessariamente.
acho que perdi um pouco de mim em algum canto da sala. talvez precise caiar a casa novamente, desarrumá-la, e, após um um longo e terrivel inverno pô-la no lugar. sem pintor, sem alegria das moças, sem moscas, sem sonhos de mamãe. talvez quem sabe sinta a mulher latente que hoje cansada se deita em flor mesmo que a primavera seja tão breve.
madrugada, 2006
gigi pedroza