sábado, 1 de novembro de 2008



seu josé valim

odiava a chegada desse senhor em nossa casa, pois significava desarrumação. eu tinha que mudar a casa de minhas bonecas porque tudo teria que sair do lugar para o pintor da vida inteira caiar a nossa casa.
mamãe ficava feliz... eu percebia pois tudo depois cheirava a coisa nova. ela adorava coisas novas. de uma pintura caiada a um fogão novo. lembro-me até hoje quando chegou o fogão a gas, foi uma festa só. era artigo de luxo naques tempos.
pergunto-me sempre o porquê de tanto gosto, muitas mulheres gostam tanto de coisas, cacarecos, enfeites, bugigangas. felicidade. eu não, gosto de livros, plantas, animais e lençóis lavados. gosto pouco de coisas para arrumar. sou preguiçosa profundamente.
lembro-me perfeitamente quando papai o contratava. a casa, ou seja, mamãe e as meninas ficavam em flor, pois a vaidade humana também se encontra em pequenos detalhes, momentos. pintar a casa era acontecimento, era felicidade ligeira, pois o tempo este vilão cruel borra tudo. logo com o passar dos dias e a chegada das moscas, a impressão de limpeza dava lugar ao que eu odiava na fazenda - moscas - pequenas, grandes e ligeiras. ódio profundo se apossava de mim. elas eram inconvenientes, dava náuseas. queria fugir dali , mas teria que ficar o tempo necessário, o tempo de compreender que gente e moscas disputam o seu lugar no universo. perde apenas aqueles que a vida gasta desnecessariamente.
acho que perdi um pouco de mim em algum canto da sala. talvez precise caiar a casa novamente, desarrumá-la, e, após um um longo e terrivel inverno pô-la no lugar. sem pintor, sem alegria das moças, sem moscas, sem sonhos de mamãe. talvez quem sabe sinta a mulher latente que hoje cansada se deita em flor mesmo que a primavera seja tão breve.
madrugada, 2006
gigi pedroza

Um comentário:

Nádia Mara disse...

Linda!
Já começo a gostar dos seus escritos!