terça-feira, 4 de novembro de 2008

a renovação

na nossa casa era o dia mais esperado. uma semana antes de preparativos. casa limpa, flores nos vasos, a bateria dos alumínios era ariada com cinzas pelas moças. a cristaleira, razão de orgulho de mamãe, era lustrada, os cristais polidos, sequilhos, bolos, chá café no dia. era pura felicidade.
o bom dia chegava, e com ele, os convidados. uns vinham contritos e rezavam suas preces ao santíssimo com louvores e adoração. lembro-me até hoje... "coração santo tu reinarás/ o nosso encanto sempre terás..."outros pilheriavam no terreiro, que havia sido varrido com esmero. era a ordem. haviam aqueles que ao falarem sobre a colheita, exprimiam um gemido de tristeza, pois diziam sobre as pragas, a seca impiedosa.
a fogueira era preparada por papai e as meninas. era um ritual quase lúdico. iluminava a gente de lá. até os sonhos infantis da menina triste que observava tudo: joli, a cachorra, sempre no meio das pernas das crianças, com olhos esbugalhados a espera de uma guloseima que caísse das mãos de um... os beijos roubados as escondidas... uma vez teve "queda-de-corpo"- expressão usada por papai. foi assim... um dos irmãos, rapaz fogoso e uma certa jovem, era uma das mais moças irmã da cunhada... os dois com atrevimento juvenil entraram sorrateiramente no quarto das moças e lá se tocaram como nunca feito. a menina espiava tudo, o nunca visto.
a festa durava enquanto durava os sequilhos, o chá, o café e as conversas sobre chuvas que nunca vinham, mas sempre esperançava o coração daquela gente. no fim, todos ficavam felizes. as mulheres limpavam tudo, os homens carregavam os bancos improvisados e as cadeiras, as crianças sonolentas caiam nas camas e redes sem se trocarem. era uma noite abençoada de corações alegres. talvez.
mas renovação boa para nós as filhas de assis, era a de lurdes luis, filha de maria, a lavadeira da vida inteira. lá os sequilhos tinham sabor de rapadura de cravo e melado, não havia criança que não gostasse. lembro-me até hoje. íamos sempre vestidas com vestidos de bolsos para enchê-los de sequilhos e na volta pelas estradas da fazenda e caminhos de sonhos que eram só nossos comíamos com gula particular que toda criança tem. mamãe não achava isso bonito, mas sabia que criança é criança. ralhava, dizia que era feio, mas no fundo também se divertia. era só risos... até hoje sinto em minhas lembranças e saudades o sabor dos sequilhos de lurdes...
como a vida era doce e cheirava a sequilhos com chá de erva- doce, e eu tonta nem sabia disso, pois é. foi assim por muitos anos. é a faceirice da juventude que preludia a nossa velhice. meu deus! que tempo bom! adeus chico lopes, não o verei mais. nunca mais.
*renovação - festa ou cerimonia religiosa para renovar a esperança da família e do casamento.
gigi pedroza

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